Esta espécie de leitura
sempre em contratempo, cuja argumentação dialoga em simultâneo com o presente,
o passado e o futuro, acabará assim por ser reveladora de um interesse pelo Mundo
enquanto Mundo, objecto para além do ser humano, e pelos respectivos “ritmos e
forças do nascimento e declínio do mundo em que os homens acontecem” (p.14).
Pelo que a concepção neste ensaio preconizada será também, e afinal, uma teoria
do próprio Mundo sem o ser humano que, não existindo sem ele, se impõe como
tentativa de gerar a compreensão do ausente. Diz o autor: “a vigília na luz
eterna anula o alerta que, nos tempos da velha terra, obriga a fechar os
portões à noite e a ocupar as muralhas” (p.214). Nesse sentido, a ausência será
portanto esse estado no qual o ser humano se distancia e se supera a si próprio
na compreensão que faz de si e do que habita, perspectiva que derivará assim
também da sua constatação enquanto sujeito que se define na dualidade dinâmica
do permanente “ido e vindo”.
Nesta tentativa
de legibilidade do sujeito contemporâneo à procura do seu lugar no Mundo, o
autor discorre progressivamente, no sentido do esclarecimento maior, acerca de
um conjunto de axiomas que ele considera estruturadores nesse processo de
revelação da matriz do “Homem” como este é pensado e de como, à luz de uma nova
teoria, ele deve, nesta perspectiva, ser pensado. Começar-se-á assim, em
“Porque é que isto me acontece a mim?”, primeiro capítulo do ensaio, por um
enquadramento que se faz a partir de conjecturas diversas que caracterizam o
sujeito enquanto animal colonizador da “terra firme do Eu” (p.20). Neste
sentido, o ser humano será o herói que contra-ataca o mundo hostil de forma
errante ou, por outro lado, o anti-herói determinado. Este pode ainda, além
disso, ser caracterizado enquanto animal sem saída, autóctone, obcecado pelos
conceitos de genealogia, parentesco e prosperidade (pp.34-36) que, sob o fenómeno
da globalização, a partir de 1942, abandonará esse mesmo princípio a favor
daquilo que Sloterdijk sintetiza como o “’Dasein’
de uma humanidade conectada horizontalmente numa sincronia realizada à escala
planetária” (p.20). De animal sem saída, o ser humano terá evoluído então para
uma “nova forma de consciência temporal interior” (p.36) que se projecta e
expande na busca pelo futuro.
Este será assim
um sujeito endurecido porque obrigatoriamente remetido ao ajuste a um Mundo sem
perspectivas nem mais fronteiras por transpor, num Ser-aí cercado que se traduz numa fuga da paciência e da contenção
ou auto-controlo, estados que caracterizam as civilizações avançadas. A isto
acresce, portanto, uma forma de resistência que desembocará inevitavelmente
numa saturação do sujeito em torno de si mesmo, isto é, no individualismo, aqui
definido pelo autor enquanto “elaboração activa de resistência básica” (p.40),
e numa mística como forma de fuga para fora do tempo. Desta evidência decorrerá
invariavelmente o paradoxo do ido em excesso, da suprema ausência do Mundo pois
que o ser humano será agora, segundo o autor, o ser que não mais “pode viver
com a verdade nem sem ela” (p.51).
A partir da
análise destes princípios que estão na base da decifração do sujeito enquanto
ser em fuga, o autor ensaiará, no segundo capítulo do ensaio e numa perspectiva
antropológica, uma tentativa de intensa compreensão da fuga do Mundo em si,
partindo de uma constatação do mesmo enquanto permanente “metoikoi de raiz”, que o mesmo é dizer, “animal determinado a estar
em mudança” (p.54). A metoikesis será
assim o mecanismo de transição no processo trifásico do modo de ser da alma em
pré-existência, existência e pós-existência; processo, portanto, detonador da
evolução da íntima mobilidade humana.
Nesta medida, a
História poderá ser entendida enquanto “drama que se desenrola no enorme
combate pelo verdadeiro local e o verdadeiro elemento da vida humana” (p.56), e
o anacoretismo e o monasticismo do séc. IV d.C. e de por aí adiante, “motes de
renúncia aberta à normalidade cósmica” (p.55). A busca pelo
“princípio-deserto”, definida por Sloterdijk enquanto instituição metafórica,
consiste assim numa metoikesis de
extenso alcance uma vez que se traduz numa transição para o lugar da sombra,
sítio de extinção da presença humana no Mundo que se auto-anula e se
desresponsabiliza do acto de interpretar e, portanto, mudar esse mesmo Mundo.
No outro lugar, à sombra de si própria, a civilização ocidental, em plena era
“em que o mundo é tudo o que se pode dar ao caso” (p.67), protagonizará a metoikesis a partir da música. Na era da
pós-metafísica, as forças orientadas
para a mudança analisam-se a assim partir da história cultural da Humanidade e,
mais concretamente, da música, aqui entendida como fuga entre o fluido e o morto
para o sujeito que não é nem completamente monge nem completamente mundano. É
assim que “o ataque do som artificial aos ruídos exteriores do mundo atingiu
neste século uma intensidade sem par em toda a história da espécie” (p.72).
Perante a fuga
como necessidade instituída no “Homem” pela metoikesis,
no capítulo “Drogas para quê? Da dialéctica da fuga e da dependência do mundo”,
o terceiro da obra, o autor analisa outras formas de fuga à luz de uma nova
perspectiva que não reduz a fuga à alienação consumada enquanto ausência
voluntária e inconsequente. Sloterdijk partirá do exemplo das drogas, referindo
no entanto também outras dependências difusas e não narcóticas, para questionar
exaustivamente o axioma que associa a droga à dependência. Na origem desta
articulação que funciona em bloco porque teima em não se desarticular, o autor
relembra que estão três factores: o emudecimento dos deuses, a desritualização
do domínio e a formação explícita da vontade de não-ser (ver pp. 85-90). A
conjugação destes factores será a razão de uma asfixia global que deposita o ser
humano num “mundo neutro, prosaico, aberto e, por último, sem sentido” (p.86).
Institui-se por isso e assim a maior de todas as subversões e que se baseia no
princípio legitimador de uma preferência por uma morte verdadeira a uma vida
falsa. Desta forma se procede à explanação de um conceito religioso-filosófico
de dependência, ao mesmo tempo que se analisa a presença do ser humano no Mundo
à mercê de um abismo que se crê ser o único espaço possível de partilha entre
os seres. Esta constatação entretece, entretanto, a necessidade que se impõe
como obrigatória da descoberta de uma nova forma de partilha do embaraço do ser
a partir do Ser-aí simultâneo, isto
é, uma partilha que não parta nunca da negação do Mundo.
Outro aspecto
por isso permanente da fuga será, para o autor, quando radicalizada no seu
limite, a própria morte. Reflectir acerca da “pulsão da morte”, que ocupará o
quarto capítulo do ensaio, significará decompor in extremis as finalidades da própria alma, sendo que a morte ela
mesma representará para ela, para a alma, o encontro com o seu fundamento
primordial. Assim entendida, a morte funcionará como “metáfora da perfeição
consumada e da última morada do destino” (p.114). Desta forma, e no contexto de
uma nova teoria moderna do “Homem”, o estado último deverá ser interpretado
enquanto “sintoma da urgente gravidade da aventura da inteligência através da
espécie no seu conjunto” (p.127), portanto, forma de chamamento ao
esclarecimento do destino comum. Na verdade, a busca pela verdade metafísica
mais não será do que a exposição da “dissonância existencial em tempo
histórico” (p.130), uma necessidade de saber, sendo que neste contexto assumem,
para o autor, particular importância as sabedorias do Oriente enquanto
“disciplinas de verdadeira vida sob a direcção de um empenho renovado pelo
verdadeiro discurso” (p.130). Além do mais, na origem da emergência das grandes
metafísicas estará o racionalismo imperial das grandes unidades políticas e o
racionalismo libertador das psicocosmoterapias, sintomas portanto de uma
racionalidade imperfeita que se traduz no desajuste entre o indivíduo e o
Mundo. A busca pela verdade consumar-se-á assim numa espécie de luta gigantesca
entre o “hedonismo metafísico democrático” e uma “modernidade sem iluminação”
(p.135). Este gesto de apontar ao Mundo (a ausência como gesto de apontar que o
mundo está ali e não aqui) traduz a afeição pelo seu enigma básico. Assim, o
Mundo que aponto é o Mundo perante os olhos, logo é o Mundo que posso ou tento
conhecer.
Não deixa, no
entanto, de ser chamado à cena o papel que a linguagem não metafísica deve
desempenhar na consumação deste processo de conhecimento do espaço habitado. À
iluminação deverá assim corresponder uma teoria da ausência do Mundo
(desmundanização e equilíbrio), à salvação, uma teoria do acabar (alívio de
círculos viciosos) e à libertação, uma teoria da criatividade (liberação). O acosmismo, conceito que dá o nome à
última parte do quinto capítulo do ensaio, ou “Será o mundo negável? Sobre o
espírito da Índia e a gnosis
ocidental”, aplicado ao quotidiano traduzir-se-ia assim num estado de plenitude
e equilíbrio. Trata-se afinal, no fundo, a iluminação, o mais importante dos
conceitos acima enunciados, de um mecanismo de defesa contra a vigília
permanente e um caso específico de ausência do Mundo necessário à estabilidade
do processo de conhecimento. Esta perspectiva integrada significará, além de
tudo, o reconhecimento de que “todas as almas praticam, à sua maneira, a arte
de estar e, ao mesmo tempo, de não estar no mundo” (p.156).
Por outro lado,
a afirmação do sujeito no Mundo, processo analisado exaustivamente no sexto
capítulo da obra, sustentar-se-á em múltiplos processos de ausência. Refutando
a teoria da crítica da razão pura de Kant, o autor conclui que o ser humano não
pode dar à sua existência um modo de constituição (porque não teve o direito,
racional, de escolher se queria ou não ter nascido), o que fará jazer por terra
a ideia de que os homens podem assumir racionalmente a responsabilidade da sua
vida. Nestes termos, conclui-se também que a afirmação do sujeito passará
necessariamente pelo conceito heideggeriano
de “Homem” como ser ido ou “espontâneo desertor” (p.164). Restará portanto
e somente a sua afirmação naquilo que o autor chama de “começar de novo” ou
“nascimento progressivo” (p.171), num processo de anulação do substrato
problemático do passado.
Desse nascimento
progressivo e do processo de afirmação do lugar do sujeito no Mundo fará também
parte a música, suporte através do qual o sujeito se conjuga nas duas
aspirações que o caracterizam: a ida e a vinda. Quer isto dizer que, se por um
lado, esta conduz à arena do Mundo, por outro, subsistirá igualmente enquanto
mecanismo de supressão da dissonância que desemboca na interiorização e
posterior libertação do sujeito. Portanto, à pergunta “Onde estamos quando
ouvimos música?”, pergunta que dá o mote a um dos capítulos mais interessantes
do ensaio em análise, o autor responderá que em lugar nenhum definível porque
algures entre o ir ao encontro do Mundo ou a fugir dele. Afinal no lugar onde
estamos condenados a estar. A música será assim essa espécie de condenação
igual à condenação da saudade e da liberdade a que não nos importamos nunca de
estar condenados.
Condenados a
nascer e a estar, certo é que o verdadeiro nascimento do ser humano se dá no
momento em que este se torna alegre velador do universo que o rodeia, na medida
em que “O mundo é agora tudo de que já não fugimos” (p.194). Perante a estabilidade
da matéria, conhecemos as coisas. E este co-saber humano das coisas e da sua
quintessência mais não será do que o conhecimento do Mundo. Em “Como tocamos no
sono do mundo? Conjecturas sobre o despertar”, último capítulo do ensaio, e a
partir da análise das primitivas interpretações culturalmente avançadas do ser-no-mundo feitas por povos produtores
de História, cuja herança se demora no devir civilizacional até aos nossos dias,
Sloterdijk instituirá a vigilância enquanto acto de obrigatória adesão ao colectivo,
válida na medida em que o velar se transforma depois em saber e respeito pela
liberdade; como nexo moral entre os homens de um mesmo reino, portanto
promotora do espírito solidário que emancipa os homens da violência; e ainda
vigília enquanto tensão apocalíptica com base numa “fórmula teológica
admonitória contra o descuido da atenção na multidão e as mortais quebras das
promessas de vida comum” (p.208). Admite, no entanto, a insuficiência destes
modelos historicamente esgotados perante a situação global do presente, lançando
por isso o alerta para a urgência de uma contemplação de um estado de vigília
de alcance planetário que institua “um novo corpo de axiomas do saber viver”
(p.212). Chama ainda a atenção para o facto do estado de vigília em permanência
se transformar em “triunfal integridade” (p.213) que nada terá a ver com o
Mundo propriamente dito já que a luz neste estado de suprema existência tirará
a noite à vida e o nada ao ser. Em boa verdade, será na pausa do Mundo que o
ser humano encontra o consenso consigo mesmo porque é a ausência que o faz
perceber a presença desse Mundo que procura habitar. A totalidade será assim, e
sempre, feita da intermitência entre o aparecimento e o desaparecimento. Entre
uma coisa e outra, seremos o ser vigilante que ora olha e conhece o Mundo, ora
lhe fecha os olhos e o conhece ainda mais.
Impõe-se, no
entanto, agora que a co-existência planetária se tornou definitivamente
inevitável perante o drama da “terra-única” (p.217) e da primeira verdadeira
crise da Humanidade que é a crise ecológica, uma nova ordem de vigilância que
nos torne agentes efectivos do destino comum. Apesar da terra-mãe ser, segundo
o filósofo alemão, “portadora de uma complexidade ainda não susceptível de ser
pensada a fundo” (p.219), certo é que é ela quem transporta consigo todo o peso
do nosso cansado desgaste enquanto agentes da vigília e que é para ela e para
mais lugar nenhum que olhamos quando vamos e vimos desse e para esse Mundo.
Será também ela sempre o objecto da nossa vigília intermitente, sendo por isso
tempo de activar um novo ciclo de inteligência, uma nova antropologia que
permita “crescer e despertar mediante o êxodo para formas universais
transclássicas” (p.219). Segundo o autor de O
Estranhamento do Mundo, talvez seja este o primeiro passo, a explicar:
através de uma nova teoria do Ser Humano, saber definitivamente que é para ela,
a Terra, o Mundo, que sempre caminharemos.
Peter Sloterdijk, O Estranhamento do Mundo, trad. Ana
Nolasco, Lisboa: Relógio de Água, 2008, 220 pp. [ISBN: 978-972-708-971-0]