A canção do escravo ou reivindicação em marcha
Esta relação entre a música e a luta pelos Direitos Humanos remonta, no entanto, ao final do século XIX, com as chamadas canções de trabalho dos escravos sulistas da América do Norte, que, mais tarde, nas primeiras décadas do século seguinte, darão origem ao aparecimento do blues. Na sua génese, a música do escravo acaba por constituir-se como possibilidade única de enunciação do macabro e trágico aprisionamento de que este é vítima e, por isso, também, acto de consciência, relativamente a si próprio e aos outros. Além disso, segundo Simurs Campbell, estes cânticos de trabalho funcionarão também como oportunidade de diálogo entre os escravos que assim passam a poder comunicar entre si, sob códigos que só eles entendiam e, por isso, e mais importante, sem o patrão compreender: “Os negros trabalhavam e cantavam juntos e muitas destas canções tinham um significado que só eles entendiam. (…) Era frequente entre os negros darem asilo aos seus irmãos perseguidos que vinham pedir-lhes refúgio e, na altura própria, comunicavam-lhes em código a urgência de abandonarem a plantação nessa noite. Tais letras misturadas nas canções conhecidas tinham um enorme significado para os ouvidos negros.”
Com a abolição da escravatura, em 1865, estas canções libertam-se do guilho do medo e do anonimato e projectam-se como a voz de uma classe social esmagada, cuja condição mais não é do que o prolongamento de um estatuto histórico que se demora silenciosamente e que jamais lhe será negado. A instabilidade e insegurança provocadas pela crise do algodão, pela industrialização da agricultura, pelo consequente êxodo em massa dos campos para as cidades empurram e devolvem os negros à servidão, à segregação em guetos, à miséria de que procuravam desesperadamente fugir. Os direitos cívicos recentemente adquiridos passam assim a ser uma miragem e o blues de Leadbelly, Robert Johnson, Josh White, John Lee Hooker, entre muitos outros, o célebre e derradeiro suspiro de uma reviravolta em marcha.
foto: Hersande Hudelot
Texo originalmente publicado em Humana Online.
<< Home