Os Anos do Prazer
O lançamento pela Blue Note da antologia Placebo Years 1971-1974, de Marc Moulin, constitui um notável exercício de revisitação/revisão estética dos finais da década de 1960 e inícios da seguinte. Se tivermos em conta as implicações existentes entre as artes e o seu contexto, amplamente equacionadas e desenvolvidas por autores tão diversos como Comte, Guyau ou Marcuse, não será arriscado afirmar que um exercício de revisão estética é também um movimento de re-observação de determinado momento histórico. Entretanto, se para Marcuse, em A Dimensão Estética, o alcance intersectivo da arte se materializa numa derivação de limites e sentidos produzidos pelo social, então «a lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra razão, outra sensibilidade que desafiam a racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas instituições sociais determinantes». Pode assim concluir-se que a arte, enquanto formulação estética radicada no seu mandato, além de representar, suporta interpretações do real que, muitas vezes, o problematizam e amplificam, completando, as suas leituras, simulações e figurações.
Placebo Years 1971-1974 reúne um conjunto de canções que subsidiam essa obsessão pela liberdade que marcou a época. Marc Moulin, pianista belga, lenda viva e padrinho do electrojazz, foi o mentor do projecto. Em 1970 reunia-se com o guitarrista Philip Catherine, e outros, em torno de uma vontade de aproximar os amantes do rock da música jazz. Para isso, proclamou a criação de um novo padrão no género, fundindo-o com novas abordagens electrónicas – é nesta altura que surgem os primeiros pianos electrónicos e os primeiros sintetizadores –, nos domínios do rock, da soul e ainda do funk. No fim, um único propósito, perpetrado desde logo na escolha do nome do projecto, «placebo» (sem nada a ver com os londrinos Placebo, liderados por Brian Molko). «Having fun» (placebo designa igualmente o medicamento sem actividade farmacológica pertinente) materializava assim a resolução última duma fusão que investe numa concepção revolucionária do jazz em marcha, ao mesmo tempo que testemunhava uma concepção da arte como elemento actuante sobre o espaço que a rodeava, ideia que, nas artes plásticas, tivera em Castellani o seu principal precursor.
De facto, ocorria na altura uma actualização do conceito de arte, a qual passava a ser entendida como processo de conhecimento, pelo que o artista se assumia como agente de múltiplas intervenções ao serviço da dessacralização dos meios de expressão tradicionais e de uma ruptura relativamente às ideologias correntes. A funk art, a land art, a body art e a chamada «arte pobre» constituíam subcorrentes artísticas laboradas nessa demanda desamparada por uma liberdade que reivindicava a revolta contra o estabelecido. Com a «arte pobre» preconizava-se a consciencialização do indivíduo relativamente aos poderes que pretendiam instituir o consenso e a conservação no e do sistema. O envolvimento da arte no quotidiano, o diálogo entre o artista e o meio no qual se insere protagonizavam a luta pela liberdade de pensamento e de acção.
Marc Moulin surge, também ele, como tributário desta concepção renovada do exercício artístico: «os anos 70 são como as pirâmides: estão lá, mas ninguém no seu perfeito juízo tentaria reproduzi-los. Tudo era infinito». Acrescenta: «O horizonte mais longínquo, o céu mais imenso, a perspectiva além do além, as noites mais longas e os sonhos mais profundos. A palavra de ordem era: liberdade. (…) Liberdade total de pensamento e de acção. E o mesmo para as fusões: entre corpos, espíritos, temas, géneros e formas.»
No plano musical, estas duas décadas ficaram marcadas pela emergência da pop inglesa, do yé-yé francês e, nos Estados Unidos da América, do movimento folk e do posterior folk rock (Bob Dylan e Byrds), da protest song (na senda de Woody Guthrie), do rock psicadélico (Jefferson Airplane, Grateful Dead, entre muitos outros) e da soul music, a voz da luta pelos direitos cívicos do povo negro. No jazz, John McLaughlin, Larry Corryell, Chick Corea e Jeff Beck arriscam a requalificação do género, até então marginalizado pelo seu elitismo, enquanto Miles Davis e Jimi Hendrix insistem na difícil síntese entre o rock e o jazz. Na música «nunca nada tinha sido tão experimental», e, segundo Moulin, tudo aquilo que precisavam fazer para entrarem no esquema, «era sermos diferentes». «Para isso», recorda, «misturámos um pouco de tudo: folk com rock, funk com jazz, música electrónica e pop, instrumentos clássicos ou bizarros adaptados a invenções renovadas. (…) [desta forma] a música substituiu o diálogo. E, acima de tudo, dominou claramente todas as outras formas de arte e de comunicação.»
Neste contexto, o jazz, enquanto «reflexo cultural de uma progressão histórica», segundo Luís Trindade, e, por isso também, Placebo de Marc Moulin se assumia como émulo e tributo de um tempo que era o da revolução cultural do Ocidente, e de uma vanguarda, definida, pelo mesmo autor, como «um rasgo anti-poder e uma machadada nas articulações arrivistas dos impositores». Além disso, mais do que vanguarda, Ball of eyes (1971), 1973 (1973) e Placebo (1974), os três álbuns lançados pela banda no seu curto período de existência, justificam, presentificando, impulsos, argumentos e complexas alegorias estéticas que questionam, ao mesmo tempo que ensaiam e premeditam, soluções e decifrações esclarecedoras de um contexto em desvantagem. Porque comprometido com a sua própria sentença.
Marc Moulin (2006), Placebo Years 1971-1974. Blue Note/EMI
Texto originalmente publicado em Passado/Presente
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