Obrigada M.
“Nessa travessia simbólica de um compartimento para o outro, do quarto para a sala, ensinaste-me a ouvir Nana Mouskouri, de quem tanto gostavas, sobretudo através do que levavas de ti, do que não revelavas a ninguém e que só eu entendia. Das simbioses e expressões modificadas pelo ruído maior da vida que acontecia no resto da casa, recordo o teu olhar triste e aquele gesto em que te desfazias da mágoa e te deixavas ser tu, no preciso momento em que a agulha tocava o disco e a música se sobrepunha a todos nós, no leve abanar do rosto, na postura humilde de quem admite, por fim, o cansaço, na profundidade do teu olhar na direcção do meu. Depois, ias-te embora e deixavas-me sozinha com a música, enquanto eu ficava a olhar a porta, à espera que regressasses rapidamente e te sentasses comigo no sofá. Nesse compasso de espera, habituei-me a gostar do que tinhas escolhido para substituir a tua companhia. A não ausência era, no fundo, a melhor fórmula que tinhas encontrado para eu perceber o que tu querias que eu percebesse, porque aquilo que me querias dizer era maior que nós as duas, maior que o segredo, maior que a certeza, um género desigual de arte que eu concretizava no que ouvia e que, ao mesmo tempo, entrevia no teu pensamento, na tua forma de sentir. Talvez a minha paixão pela música tenha começado aí. Na eterna possibilidade, no imaginário representativo, no que causa consequência e no pressuposto maravilhoso que sempre foste para mim. Obrigada M.”
Foto: Sérgio Miguel Silva
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