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sexta-feira, outubro 17, 2008

“dentro das luzes apagadas” *

* - in Quando ficamos como a assim a ouvir-nos, p.47.

Uma gaveta de papéis é um lugar onde se mexe e se procura. Abre-se e fecha-se. Remexe-se e procura-se outra vez. É um lugar que é também onde nos colocamos e guardamos e onde nos procuramos a nós também. Tem dentro um pouco de nós, dos outros, que somos nós outra vez, e os lugares, as coisas e as palavras por fim. Ou no início. Os lugares, as coisas e as palavras são a memória que, do passado sendo, deixa de o ser quando a gaveta se abre e se descobre como uma espécie de “estranheza do que já não somos ou já não possuímos [e que nos] espera ao caminho nos lugares estranhos e não possuídos”, recuperando Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis.
Invisíveis podiam ser também as cidades de José Luís Peixoto, não soubéssemos delas os nomes. Em “Fotografias de Cidades”, capítulo que abre o último livro do autor, distinguido com o Prémio Daniel Faria, dez são as cidades a partir das quais se ensaia, por um lado, a perplexidade de olhar sobre si próprio, e, por outro, uma nova geografia do lugar enquanto itinerário onde se inscreve o sujeito que o habita. São Francisco, Abidjan, Madrid ou Helsínquia, alguns dos lugares que figuram nesta espécie de roteiro sem destino definido, podiam no entanto ser qualquer outra cidade do mundo, as imaginadas e/ou as invisíveis, como as de Calvino, incluídas. Porque são os lugares, estes e aqueles, as pessoas: “As tuas mãos seguram-me/ os braços, Rio de Janeiro, porque querem ter a certeza/ de que estou aqui” (p.13); o rumo onde nunca chegamos a estar: “O tempo diz-me que Helsínquia é um sonho/ que nunca conseguirei concretizar» (p.12); ou a reconciliação: “A tranquilidade de se possuir algo e/ de se acreditar nessa certeza é também Estocolmo” (p.17). Budapeste, por exemplo, será por fim o lugar permanente, indecifrável, onde o eu, autor, se suspende: “Budapeste não tem solução./ Passarão décadas e morreremos cheios de segredos” (p.14).
As fotografias e os papéis que estão na gaveta são também os segredos que ali se guardam para não mais os procurarmos. Porque é a natureza dos segredos essa mesma, a de serem guardados para não deixarem de o ser. Em Cédula Pessoal, da série “Documentos”, os segredos guardados são as “dúvidas” ou o “caderno de linhas direitas” e a “régua mais bonita da terceira classe”, as “preocupações” ou o “walkman tonto”, a partir do qual o autor afirma ter desaprendido a ser infeliz. Mais à frente, as três chaves a pesar no fundo da folha de papel sustentam esse exercício de construção de sentidos do poeta sobre si próprio, a partir da improbabilidade das palavras transformadas em objectos que se retiram da gaveta e ficam a jazer no lugar da folha em vez delas, das palavras. Porque são as chaves como as “cruzes ao longo das estradas”, que, em silêncio, “seguram uma parte do mundo” (p.35).
Em “Postais”, capítulo seguinte, é dos fundamentos que se fala. E os fundamentos são o amor e a poesia, temas aliás recorrentes na obra de José Luís Peixoto. A poesia como circunstância de nascimento do mundo e verdade absoluta é o mote do poema que abre o capítulo, onde se afirma que “A cidade continua nas ruas, as raparigas riem, / mas há um segredo que fermenta no silêncio. / São as palavras, livres, os livros por escrever, /aquilo que virá com as estações futuras” (p.45). Mais adiante, o poeta dos livros por escrever é aquele que tem a orquestra inteira, a coragem necessária, o lago que reflecte a noite e a lua, o ar, o tempo e ainda, diz, “uma palavra que corre à minha frente, mas que consigo apanhar e que ainda utilizo no poema” (p.42). Poeta será também o que, tendo os lagos, desmancha depois os rios, em Desmantelamento de um Rio e respectivos Estudos. Nesta série de quatro poemas antecipa-se o acto de “destruição contra o caos”, referido depois no poema Gruas no Cais descarregam mercadorias, ali descrito como a lenta e agonizante dissolução entre mim, o poeta, e ti, “as mães dos meus filhos”, portanto, a morte no “túmulo” que ali adiante “precisa do nosso calor” (p.67), no poema Monólogo. Por fim, ao fechar-se a gaveta, a tarefa que ficará por cumprir, entre as enumeradas na série “Lista de Tarefas”, será sempre a de “esquecer outra vez” (p.74).
A sobrar, no fundo da gaveta de papéis, ainda dois “Desenhos dos meus filhos”. Como as cruzes e as chaves, também as crianças são as que seguram o mundo e, por fim, o salvam. Ao poeta também. Porque uma gaveta é um lugar escuro onde entra a luz quando se abre. Nesta cabem, lado a lado, o amor e a morte, e ainda a certeza de que poeta é o que diz que ”no fim de cada noite, eu sei sempre que não pertenço nem à vida, nem à morte” (p.40), porque é às palavras, por último, que pertence.


Publicado em Revista MACA Magazine de Arte de Coimbra & Afins, 3, 76-77.