“dentro das luzes apagadas” *
* - in Quando
ficamos como a assim a ouvir-nos, p.47.
Uma gaveta de
papéis é um lugar onde se mexe e se procura. Abre-se e fecha-se. Remexe-se e
procura-se outra vez. É um lugar que é também onde nos colocamos e guardamos e
onde nos procuramos a nós também. Tem dentro um pouco de nós, dos outros, que
somos nós outra vez, e os lugares, as coisas e as palavras por fim. Ou no
início. Os lugares, as coisas e as palavras são a memória que, do passado sendo,
deixa de o ser quando a gaveta se abre e se descobre como uma espécie de
“estranheza do que já não somos ou já não possuímos [e que nos] espera ao
caminho nos lugares estranhos e não possuídos”, recuperando Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis.
Invisíveis
podiam ser também as cidades de José Luís Peixoto, não soubéssemos delas os
nomes. Em “Fotografias de Cidades”, capítulo que abre o último livro do autor,
distinguido com o Prémio Daniel Faria, dez são as cidades a partir das quais se
ensaia, por um lado, a perplexidade de olhar sobre si próprio, e, por outro,
uma nova geografia do lugar enquanto itinerário onde se inscreve o sujeito que
o habita. São Francisco, Abidjan, Madrid ou Helsínquia, alguns dos lugares que
figuram nesta espécie de roteiro sem destino definido, podiam no entanto ser qualquer
outra cidade do mundo, as imaginadas e/ou as invisíveis, como as de Calvino,
incluídas. Porque são os lugares, estes e aqueles, as pessoas: “As tuas mãos
seguram-me/ os braços, Rio de Janeiro, porque querem ter a certeza/ de que estou
aqui” (p.13); o rumo onde nunca chegamos a estar: “O tempo diz-me que
Helsínquia é um sonho/ que nunca conseguirei concretizar» (p.12); ou a
reconciliação: “A tranquilidade de se possuir algo e/ de se acreditar nessa
certeza é também Estocolmo” (p.17). Budapeste, por exemplo, será por fim o
lugar permanente, indecifrável, onde o eu, autor, se suspende: “Budapeste não
tem solução./ Passarão décadas e morreremos cheios de segredos” (p.14).
As fotografias e
os papéis que estão na gaveta são também os segredos que ali se guardam para
não mais os procurarmos. Porque é a natureza dos segredos essa mesma, a de
serem guardados para não deixarem de o ser. Em Cédula Pessoal, da série “Documentos”, os segredos guardados são as
“dúvidas” ou o “caderno de linhas direitas” e a “régua mais bonita da terceira
classe”, as “preocupações” ou o “walkman tonto”, a partir do qual o autor
afirma ter desaprendido a ser infeliz. Mais à frente, as três chaves a pesar no
fundo da folha de papel sustentam esse exercício de construção de sentidos do
poeta sobre si próprio, a partir da improbabilidade das palavras transformadas
em objectos que se retiram da gaveta e ficam a jazer no lugar da folha em vez
delas, das palavras. Porque são as chaves como as “cruzes ao longo das estradas”,
que, em silêncio, “seguram uma parte do mundo” (p.35).
Em “Postais”,
capítulo seguinte, é dos fundamentos que se fala. E os fundamentos são o amor e
a poesia, temas aliás recorrentes na obra de José Luís Peixoto. A poesia como circunstância
de nascimento do mundo e verdade absoluta é o mote do poema que abre o
capítulo, onde se afirma que “A cidade continua nas ruas, as raparigas riem, /
mas há um segredo que fermenta no silêncio. / São as palavras, livres, os
livros por escrever, /aquilo que virá com as estações futuras” (p.45). Mais
adiante, o poeta dos livros por escrever é aquele que tem a orquestra inteira,
a coragem necessária, o lago que reflecte a noite e a lua, o ar, o tempo e
ainda, diz, “uma palavra que corre à minha frente, mas que consigo apanhar e
que ainda utilizo no poema” (p.42). Poeta será também o que, tendo os lagos, desmancha
depois os rios, em Desmantelamento de um
Rio e respectivos Estudos. Nesta
série de quatro poemas antecipa-se o acto de “destruição contra o caos”, referido
depois no poema Gruas no Cais descarregam
mercadorias, ali descrito como a lenta e agonizante dissolução entre mim, o
poeta, e ti, “as mães dos meus filhos”, portanto, a morte no “túmulo” que ali
adiante “precisa do nosso calor” (p.67), no poema Monólogo. Por fim, ao fechar-se a gaveta, a tarefa que ficará por
cumprir, entre as enumeradas na série “Lista de Tarefas”, será sempre a de
“esquecer outra vez” (p.74).
A sobrar, no
fundo da gaveta de papéis, ainda dois “Desenhos dos meus filhos”. Como as
cruzes e as chaves, também as crianças são as que seguram o mundo e, por fim, o
salvam. Ao poeta também. Porque uma gaveta é um lugar escuro onde entra a luz
quando se abre. Nesta cabem, lado a lado, o amor e a morte, e ainda a certeza de
que poeta é o que diz que ”no fim de cada noite, eu sei sempre que não pertenço
nem à vida, nem à morte” (p.40), porque é às palavras, por último, que
pertence.
Publicado em Revista MACA Magazine de Arte de Coimbra & Afins, 3, 76-77.
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