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domingo, setembro 16, 2007

Trachimbrod*


“Everything is Illuminated” é um filme que quase não espanta. Simples, metódico, colorido. O espanto vem depois, no fim e apenas quando nos apercebemos que todas as respostas ficam dadas sem ter sido necessário fazer-lhe as perguntas. Além da banda-sonora, étnica, folclórica e meditativa, assinada por Paul Cantelon, autor de bandas-sonoras de filmes como “Kill your Darlings” (2006) ou “Issaquena" (2002), é o desenraizamento dos alicerces que presidem à construção da matéria romanesca, o pressuposto de onde se parte que acaba por surpreender. O enredo, nada complexo mas eficaz, intenso e extraordinário, baseado no romance de Jonathan Safran Foer com o mesmo nome, resulta numa performance de loucos disfarçados, afoitos e incendiários do próprio destino porque inconscientemente comprometidos com a regulação do papel da memória nas respectivas vidas.

O contexto histórico emergente é o do rescaldo de uma Segunda Guerra Mundial perspectivada essencialmente a partir daquela que foi uma das suas mais complexas e discutíveis causas propulsoras: a mitologia racista dos judeus enquanto raça inferior e perniciosa. Tributário portanto da longa história do anti-semitismo na sua vertente mais extrema e hedionda, “Everything is Illuminated” entretém-se depois, ou entretanto, num enquadramento espacial que não acontece ao acaso porque sincronizado com o que acima ficou exposto, que se transcende e se substancializa numa Ucrânia que se perfila através de edifícios decrépitos e abandonados, ruas vagamente vazias, silêncios e espaços preenchidos pela incontornável memória de uma guerra ainda latente.

Apesar, assim, do enredo se oferecer essencialmente ao meio milhão de judeus ucranianos dizimados durante a ocupação alemã, trata-se igualmente de reaver, explicando, e através da restauração de determinadas memórias entretanto extraviadas, o presente de um país gravemente afectado pela desordem do passado. No entanto, e em simultâneo, a recuperação da Segunda Guerra Mundial conflui maquinalmente na evocação do Holocausto, seu cemitério e tentativa de esquecimento. A singularidade, a firmeza e a habilidade do argumento residirão assim na perspectiva através da qual são filtradas todas as premissas e que é a de que a tentativa gorada, porque contrafeita e ilegítima, contém em si o efeito perverso do reforço contínuo e acrescido. Esta mesma tese de envolvimento programático entre passado e presente materializar-se-á, além de tudo, no enredo propriamente dito, constituindo uma espécie de eco do contexto assinalado pelo ambiente em que se movem as personagens. Senão vejamos.

Liev Schreiber, o realizador e argumentista deste filme de 2005, assina a história de Jonathan Safran Foer, personagem interpretada por Elijah Wood, judeu, “coleccionador de coisas”, isto é, de objectos vulgares (que deslocados do seu contexto comum, deixam de o ser), e que parte para a Ucrânia à procura de soluções para as incertezas que tem relativamente ao passado da sua família. Augustine e Trachimbrod constituem as únicas pistas de que o protagonista dispõe e o ponto de partida através do qual procurará as respostas que lhe são exigidas por uma imaginação curiosa e atarantada. À procura portanto do seu passado e da história da sua vida, e mais concretamente da rapariga que salvou a vida do seu avô durante a Segunda Guerra Mundial, Jonathan conta com a ajuda da “Odessa Heritage Tour”, empresa contratada pelo próprio e especialista na reconstituição das origens dos judeus que perderam o rasto das suas famílias durante a guerra. A empresa é toda ela constituída por elementos da família Perchov, e mais concretamente pelo avô, um faz-de-conta-que-é-cego, delirante e em pleno processo de ruptura com tudo e todos os que o rodeiam mas, acima de tudo, consigo próprio; o neto, o tradutor e um fã devoto do american way of life, e finalmente o cão, mentalmente perturbado, de seu nome Sammy Davis Júnior Jr., o guia do avô e, afinal, de toda a companhia.

A jornada pelo coração da Ucrânia, a pretexto de encontrar Augustine e Trachimbrod, acabará, no entanto, por se transformar num exercício de catarse provocado pelos sucessivos reencontros com tempos, espaços e memoriais metafóricos que cada uma das personagens acabará por viver. Além disso, a viagem constituirá uma espécie de processo acusador de raízes, espelho refractário de uma memória insidiosamente marginalizada pelos mais diversos motivos, situação que encontrará no avô o seu exemplo mais paradigmático. No caso de Jonathan, o encontro com a irmã de Augustine, única sobrevivente da família, e o confronto com a dissolução da intriga permitirá a recuperação de uma identidade até aí subsidiária de um imaginário hesitante, ancorado numa necessidade paradoxal de recolher e reunir objectos (batatas, areia de um rio, etc.), uma obsessão que acusa a necessidade e a tentativa de gerar e perpetuar memórias e momentos irreversivelmente assimilados por um presente urgente não reconciliado com o passado.

No que ao avô Perchov diz respeito, afinal muito mais do que mero motorista da carripana da “Odessa Heritage Tours”, a jornada acabará por converter-se na reconstituição de um pungente enredo que é o da história das suas próprias origens. A recuperação sucessiva de alguns lugares, trilhos até aí camuflados silenciosamente sob o signo do pudor e de uma auto-mortificação devassa, acaba por se transformar no restabelecimento espontâneo de um passado voluntariamente enterrado e menosprezado. Afinal, a hipersensibilidade e o desprezo declarado que vota aos judeus desde o início do filme mais não é do que um suspeito mecanismo de auto-protecção e de recusa de uma identidade que é, afinal e dolorosamente, a sua. Acto contínuo, para Alexander Perchov, o neto, a viagem constituirá também assim uma oportunidade de reconciliação, ainda que em abstracto, com o avô com quem até então mantinha uma relação de deriva e desajustamento motivado pela ausência de identidade do próprio.

Porque em articulação permanente com as motivações de raiz, o alcance e a profundidade das questões em causa acabarão por extravasar o âmbito restrito das personagens. O contexto a partir do qual emerge cada uma destas narrativas pessoais impõe-se então como pano de fundo mas sobretudo como provimento da matéria narrada, através do que se convoca a recuperação da memória histórica de um país ainda em estado de comoção, perplexo e subvertido pelos efeitos devastadores de uma guerra absurda.

Muito mais do que mero entretenimento, portanto, embora também o faça (como estratégia de equilíbrio num filme cuja temática seria, à partida, densa), “Everything is Illuminated” apresenta-se assim como advertência em andamento, corolário permanente e depósito de um conjunto de ponderações axiais, estruturantes e, por isso, sustento e antecipação de toda a acção fílmica. Entre elas: a exploração excêntrica de uma simbologia da viagem como destino metafórico no tempo e no espaço, o passado e a memória como entreposto gerador de identidade e a imposição arrebatada mas consequente de uma concepção do presente como compromisso libertador encomendado pelo passado.

* Monumento erguido em memória dos 1024 cidadãos mortos pelas mãos do nazismo alemão em 18 de Março de 1942 cujo nome é inspirado na pequena aldeia judaica de Trochenbrod, outrora situada perto de Lutsk, na Ucrânia ocidental, e completamente destruída pelos nazis em 1942.

Texto originalmente publicado em Passado/Presente.