antigo largo do porvir
Jamais fico, portanto, indiferente a uma casa desamparada. São essas que trago comigo quando caminho pelas ruas e me dou a oportunidade de existir efectivamente nesses espaços que percorro. No entanto, no meu imaginário existem duas casas que me merecem sempre especial consideração. A primeira, que trago da infância, e que talvez seja a responsável por esta, chamemos-lhe, propensão para apreciar casas velhas e decrépitas a cair aos bocados e que não sei explicar, e uma segunda que continuo a ver de tempos a tempos mas cujos dias estão certamente contados dado o avançado estado de degradação em que se encontra. Na primeira, jamais entrei. Lembro-me de a admirar de longe, sentada no chão poeirento, de lhe absorver o mistério das portadas e das janelas infinitamente fechadas e de querer-lhe a todo o custo saber como era por dentro, num querer igual a esse que nós, os adultos, alguns, temos em relação às pessoas. Lembro-me assim de perguntar à minha mãe, vezes sem conta, de quem era aquela casa e o porquê de eu não poder entrar nela e, mais ainda, o porquê de não poder brincar dentro daquele paço, não de princesas porque nunca gostei delas, mil vezes encantado e seduzido pela minha imaginação. E a todas as vezes que fazia estas perguntas, a minha mãe respondia pacientemente, de todas as vezes, a mesma coisa. E, no entanto, o diálogo repetia-se como um ritual que insistia em gerar um outro novo ritual que seria talvez o de entrar finalmente naquela casa, como se só essa pergunta e essa resposta que eu jamais escutei, me permitissem a ilusão de estar mais perto de a ver por dentro. Nunca vi e hoje também já não a quero ver. Prefiro recordá-la assim, arquitectada e habitada pela minha obstinada e ingénua curiosidade.
Da segunda casa, que tive oportunidade de visitar por dentro, sem ter sido necessário o cumprimento de um qualquer ritual preliminar, recordarei sempre uma determinada janela e a imagem devolvida por essa janela que espreitava para um outro local que não soube nunca se foi ou não e apenas o produto de uma fecunda alucinação. Desse momento guardo, no entanto, a certeza absoluta de ter dado forma a uma das muitas quimeras, dessas que todos alimentamos sem saber, acho que e apenas por me ter sido dada a oportunidade de ver algo que a minha travessa e insolente imaginação jamais poderia ter conseguido, por si só, alcançar.
Por fim, e por constituírem uma metáfora confortável do que podemos chamar asilos aleatórios dessa humana necessidade de transcender o imposto, continuo a deixar-me assombrar pela intimidade inquieta de todas essas casas de ninguém que ficaram largadas à beira do caminho. Levo-lhes o silêncio, o assobiar das frestas, a quietude infinita, o pousio das incertezas, e todas as palavras que ficaram por dizer entre as pessoas que partilharam aquelas paredes e que, por nunca terem sido ditas, passaram a ser minhas. No fundo, todos os lugares são isso mesmo, espaços que permanecem vazios, cheios de um significado perpétuo que é só deles, até que um olhar, um segundo da nossa indigente atenção lhes contrarie a solidão. A deles e a nossa.
Imagem: Alejandro Costas
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